Decidi publicar excertos de alguns trabalhos que fiz enquanto pós-graduanda, todos eles de alguma forma relacionados com a minha área de estudo preferida, Filosofia da Ciência. Publicarei um por semana.
Esta semana, vou começar com "O Estatuto Científico e Epistemológico da Memética e o Mundo 3 Popperiano". Durante a realização do trabalho, cuja escolha do tema foi totalmente livre, tive a oportunidade de constatar como a memética se tem tornado um tema bastante debatido entre as comunidades de intelectuais na internet.
Infelizmente, em Portugal, desconheço qualquer tipo de investigação dentro deste tema, sendo que é difícil fazer algum tipo de encaminhamento.
No final deste post, encontrarão algumas sugestões de leitura relativas ao tema.
Qualquer sugestão, crítica ou comentário, agradeço que se seja enviado para anamonteiro at kanguru dot pt
Obrigada.
Nota: Os excertos apresentados não incluem as notas de rodapé e são apenas uma ínfima amostra de um longo trabalho de pesquisa.
Introdução
Estamos na Idade do Darwininismo Universal , a explicação evolucionista estende-se aos mais diversos domínios; ecologia, psicologia, linguística, medicina, nas mais diversas áreas das ciências sociais e humanas, desde que o biólogo Richard Dawkins introduziu, em 1976, no léxico dos académicos, a noção de meme, ou ideia que é transmitida social e culturalmente e que evolui por processos selectivos.
Embora os cépticos possam ainda colocar a questão de como é que podemos desenvolver uma teoria da evolução cultural antes de entendermos como os memes estão instanciados no cérebro, este tipo de situação tem já um precedente: Darwin chegou à teoria da evolução biológica através da selecção natural antes da descoberta dos genes. De qualquer das formas, como sublinha Susan Blackmore, no artigo “The Meme’s Eye View” , aquilo que é importante não é saber se os memes existem ou não, é saber se a memética pode conduzir a um trabalho científico coerente.
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I . A Ideia Perigosa de Dawkins
O advento da genética nos princípios do séc. XX e o seu desenvolvimento, a síntese entre a genética e a teoria da evolução nos finais da década de 30, as novas descobertas da biologia molecular a partir de 1953 levaram os cientistas a compreender, a partir de meados de 60, que o nível mais profundo em que a selecção natural actua, não é nem nos indivíduos nem nas espécies, mas nos genes, na informação que estes contêm. Genes são replicadores biológicos. Os memes seriam replicadores de uma natureza diferente. O programa de pesquisa dos memes propõe que se pode tratar as ideias e a cultura como um todo, como um processo de replicação análoga ao que mantém os genes nas populações biológicas.
Em 1976, no bestseller da 3ª cultura “O Gene Egoísta”, Richard Dawkins introduziu a noção de meme como “unidade de transmissão cultural ou de imitação” Segundo este autor, a evolução dos memes não é apenas uma análoga à evolução biológica ou genética, não é apenas um processo que pode ser metaforicamente descrito nessas linguagens, mas um fenómeno que obedece estritamente às leis da selecção natural. A teoria da evolução natural é neutra, no que se refere às diferenças entre genes e memes; estes são apenas tipos diferentes de replicadores evoluindo em meios diferentes a ritmos diferentes; “tal como os genes se propagam no pool genético, saltando de corpo para corpo através de espermatozóides ou de óvulos, também os memes se propagam a si mesmos no pool memético, saltando de cérebro para cérebro através de um processo que, num sentido lato, pode ser chamado de imitação.”
Um dos principais oponentes desta analogia (e, portanto, da teoria dos memes em geral) é o biólogo Stephen J. Gould para quem a evolução cultural actua segundo princípios completamente diferentes: “as topologias básicas da mudança biológica e cultural são completamente diferentes. A evolução biológica é um sistema de divergência constante sem reunião subsequente dos ramos. As linhagens, assim que se diferenciam, separam-se para sempre. Na história humana, a transmissão entre linhagens representa talvez a maior fonte de mudança cultural”
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A perspectiva dawkiniana acerca dos replicadores culturais é uma perspectiva mentalista, mas não é a única, convive com uma outra, a concepção behaviorista de memes tal como defendida por Gatherer, segundo o qual a noção de meme inclui primeiramente coisas empiricamente observáveis; fora da ocorrência de um evento, não há nada. O meme para existir precisa de se manifestar em comportamentos e/ou artefactos, não há algo como um repositório interno de memes.
Contudo, os maiores defensores da memética partilham da perspectiva mentalista, entre ele o filósofo da mente Daniel Dennett e a psicóloga Susan Blackmore. A última defende mesmo uma “memética radical”, acreditando que os processos meméticos podem explicar um vasto número de fenómenos, incluindo a emergência da cultura, da consciência e das noções de “self”.
Daniel Dennett em 1995 dedica um capítulo inteiro d’ “A Ideia Perigosa de
Darwin” à teoria dos memes. Na sequência daquilo a que chama de “dinâmica replicadora”, algoritmo abstracto que consiste em “repetidas interacções de selecção entre replicadores que mudam de forma aleatória” , replicadores são unidades de informação com capacidade de se autoreproduzir usando recursos de substracto material. A “dinâmica replicadora”, quando actua sob material biológico (ADN) é chamada de selecção natural.
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II. O estatuto científico e epistemológico da memética:
A perspectiva memética vai contra alguns dos axiomas centrais das humanidades. Nas nossas explicações tendemos a evitar um dos factos-base da memética, o de uma característica cultural poder ter evoluído da forma como evoluiu simplesmente porque é vantajoso para si própria”. Dizer que “um académico é um meio de uma biblioteca fazer outra biblioteca” é algo estranho de se afirmar em qualquer campo ligadoaos estudos humanos. Por outro lado, parece ainda não haver um consenso nem evidência empírica suficiente para colocar a teoria dos memes do lado das ciências.
Enquanto alguns vêem na memética “um programa de investigação não-progressivo” , outros entre eles a já referida S. Blackmore, parecem ver nesta estratégia a salvação para as ciências sociais.
O maior ataque contra o possível estatuto científico da memética vem de Dennett. Segundo este filósofo da mente, os cientistas sociais jamais terão as técnicas reducionistas que os físicos ou os biólogos dispõem. Essas técnicas permitem-lhes saber como os genes replicam usando como substracto o ADN. No entanto, no que diz respeito à evolução cultural, o meme é, antes de mais, uma classificação semântica e não sintáctica que possa estar directamente instanciada numa “brain language” ou na linguagem natural. A sintaxe dos genes está no DNA, mas, se os memes existirem no cérebro jamais seremos capazes de ler o conteúdo memético de algumas secções do córtex. ( a neurociência não fornece ainda dados relativamente a isso).
O segundo argumento de Dennett prende-se ao facto de os memes não serem replicadores apropriados. Para que a analogia com a biologia funcione, é necessário haver uma replicação de alta fidelidade (high-fidelity replication). Mas “o cérebro parece estar concebido para fazer exactamente o contrário: transformar, inventar, interpolar, censurar e, em geral, misturar a entrada (input) antes de produzir qualquer saída (output)” Na verdade, a extraordinariamente elevada taxa de mutação e de recombinação constitui uma das características marcantes da evolução e da transmissão culturais. Como aliás, notou Steven Pinker; “memes como a teoria da relatividade não são o produto cumulativo de milhões de mutações aleatórias (não-dirigidas); cada cérebro da cadeia de produção acrescentou muitos pontos de valor ao produto de uma forma não-aleatória”.
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III. O mundo 3 de Popper:
Na tentativa de nos aproximarmos de uma visão mais clara acerca do estatuto epistemológico da teoria memética há que por em suspenso as hipóteses analógicas dos memes serem ou genes ou germes (vírus da mente), e, por inspiração platónica, concebê-los como formas/ ideias. As formas não têm propriedades investigáveis, e são mais definidas do que descobertas. Ao longo da história da filosofia até Karl Popper, as formas têm sido identificadas com essências. Contudo, tudo aquilo que um biólogo deve evitar é cair no essencialismo. Através da influência de Popper, biólogos evolucionistas e filósofos atacaram o essencialismo em biologia.
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Este filósofo da ciência sugere que o contacto entre os irredutíveis mundos dos corpos físicos (mundo 1) e das mentes (mundo 2) só pode ocorrer se mediado pelas estruturas da linguagem, habitantes do mundo 3.
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O conhecimento científico pertence a este mundo 3, e epistemologia tradicional estudou o conhecimento e o pensamento num sentido subjectivo, ocupou-se apenas do mundo 2. Ao defender a autonomia do mundo dos problemas e das conjecturas, Popper teoriza uma distinção entre conhecimento objectivo e conhecimento subjectivo; o conhecimento subjectivo refere-se a um estado mental ou de consciência, a uma disposição para agir de determinada forma, já o conhecimento objectivo consiste em problemas, teorias e argumentos, é um conhecimento sem sujeito cognoscente. “O que é relevante para a epistemologia é o estudo dos problemas científicos objectivos e das situações problemáticas, das conjecturas, das discussões científicas, dos argumentos críticos e do papel desempenhado pelos elementos de juízo nos argumentos,. (...), resumindo o estudo do mundo 3, do conhecimento objectivo, em grande medida, autónomo, é de importância decisiva para a epistemologia.” , refere.
A epistemologia objectiva terá que se ocupar do mundo 3 e, pressupondo a interacção entre ambos, contribuir para o estudo do mundo 2, o da consciência subjectiva, sem ferir a autonomia do mundo das teorias. Este, apesar de ser um produto nosso e de ter um forte efeito de retroalimentação sobre nós, é um mundo verdadeiramente autónomo, é um “produto natural do animal humano, comparável a uma teia de aranha” . É esta noção de autonomia que vai permitir a Popper fazer a analogia entre o crescimento do conhecimento e o crescimento biológico, naquilo que se considera ser um dos antecedentes da teoria dos memes.
IV. Autonomia do mundo 3 e o aumento de conhecimento
A ideia de autonomia é fundamental para a teoria do mundo 3, este mesmo sendo um produto humano, tem o seu próprio campo independente, apesar do efeito de retroalimentação entre as nossas criações e nós próprios, entre o mundo 3 e o mundo 2. O esquema genérico do conhecimento tem como ponto de partida um problema P1. A partir desse problema, procedemos a uma tentativa de solução TT que está sujeita à prova de eliminação de erros, EE, que pode ser uma discussão argumentativa crítica ou uma contra-prova experimental. De que forma seja, se for falseada, da nossa criatividade e imaginação irá emergir um novo campo de relações que constituirão novos problemas P2.
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V. Aproximação biológica ao mundo 3
Popper defende a existência de um mundo autónomo mediante uma espécie de argumento biológico ou evolucionista.
Um biólogo pode igualmente interessar-se por estruturas não-vivas produzidas pelos organismos biológicos, como as teias de aranha, ninhos de pássaros ou colmeias de abelhas. Neste âmbito, o autor de “Lógica da Investigação Científica” distingue dois tipos de problemas que surgem do estudos destas estruturas: problemas relativos ao métodos empregados pelos animais, relativos aos actos de produção, isto é, aos modos comportamentais dos animais aquando da construção dessas estruturas; e problemas acerca das estruturas elas mesmas, sob o ponto de vista das suas funções biológicas.
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Nos estudos de epistemologia objectiva, devemos ter sempre em conta a distinção entre problemas relacionados com a nossa contribuição pessoal na produção do conhecimento científico, por um lado, e os problemas relacionados com a estrutura dos produtos, como teorias ou argumentos científicos, sendo que o estudo dos produtos é aquele que é fundamental para compreender a produção e os seus métodos .
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VI. O mundo 3 e a evolução emergente
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Conclusão
Ao estabelecer um paralelo com a epistemologia objectiva de Popper, alguns dos principais problemas que se prendem com o estatuto científico e epistemológico da memética parecem esbater-se. Concebendo os memes como habitantes do mundo 3 e abandonando em parte os impasses das analogias epidemológicas (memes como vírus da mente) e genéticas (memes como genes), a epistemologia objectiva de Popper, sob um posição realista e pluralista, torna-os nos mediadores entre mundos e, por isso, têm uma existência real, efectiva.
Por outro lado, o conceito de uma epistemologia sem sujeito do conhecimento pode abrir as portas para uma maior autonomia da memética no campo das investigações científicas.
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Sugestões:
AAVV, Darwinizing Culture: The Status of Memetics as a Science, organizado por Aunger, R., New York, Oxford University Press, 2000
Blackmore, Susan J., The Meme Machine Oxford, Oxford University Press, 1999
Dawkins. Richard, O Gene Egoísta, Lisboa, Gradiva, 1999
Dennett, Daniel C, A Ideia Perigosa de Darwin: Evolução e Sentido da Vida, Lisboa, Temas e Debates, 2001
Popper, Karl R., Conocimiento Objetivo – Un Enfoque Evolucionista, Madrid, Tecnos, 1992
Popper, Karl R., O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, Lisboa, Edições 70, 1997
segunda-feira, 3 de dezembro de 2007
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