quarta-feira, 20 de maio de 2009

Esboço para uma crítica a Holton

O texto abaixo é apenas parte do rascunho de um dos trabalhos que apresentei. Depois de avaliado cientificamente, talvez ponha aqui a versão final. Tem saltos, cortes e omissões. É non-philosopher friendly!


Aquilo que Holton pretende fazer em “Quantus, Relatividad e Retórica” é apresentar uma proposta para a interpretação de textos científicos: vê-los como um diálogo entre diferentes actores, como se se tratasse do argumento de uma peça de teatro, onde o resultado é em função de uma interacção entre os diferentes intervenientes.

Holton acredita que, desta forma, usando este “método”, será mais simples comprender a retórica interna de um artigo científico. (p.93) Tarefa que, na opinião do próprio, não é à partida fácil, uma vez que o cientista, quer por uma questão de formação quer pelos mecanismos de intersubjectividade e consenso praticados dentro das comunidades científicas, procura esconder as suas influências pessoais, sociais, culturais, etc.., i.e., os valores não-epistémicos que enformam a ciência e que estão também eles na origem da publicação do artigo. Daí ser “la útil ficción de que la ciencia se desarolla en un plano bidimensional definido por el eje fenómenico y el eje analítico en vez de una multiplicidad tridimensional que incluye la dimensión temática”. (p. 93)

Este autor vai centrar a sua análise essencialmente em dois artigos; nomeadamente, “On the Constitution of Atoms and Molecules” (1913) de Bohr e “Zur Electrodynamik bewegter körper” (1905) de Einstein. Por razões da necessidade de brevidade deste comentário e, por considerar, que o segundo serve melhor os pressupostos de Holton, concentrar-me-ei nas considerações referentes a esse texto.

(...)

Em “Quantus, Relatividad e Retórica”, distingue-se entre retórica de proposição e retórica de apropriação ou rejeição, sendo que a primeira é activa, corresponde exactamente à proposta de um cientista, ao seu contributo de facto para o estado de uma questão científica. A segunda é passiva e corresponde às respostas a essa proposta por parte dos colegas da comunidade, sendo que estas têm que estar sempre em conformidade com as próprias retóricas de proposição dos investigadores e pelos seus respectivos compromissos temáticos.

Holton vai aplicar aquilo que chama de “escavação arqueológica” (à maneira de Foucault), colocando as duas sub-hipóteses: por um lado, a tarefa que um cientista está a levar a cabo no momento é a continuação do seu “solilóquio” e, portanto, também será previsível aquilo que se seguirá no seu futuro trabalho. Para ele, é possível através da análise de um artigo, desmontar a sua retórica, de modo a perceber aquilo que está por detrás das motivações de um cientista (retórica de proposição) e as consequências daquilo que é afirmado (retórica de apropriação e rejeição).

(...)


A meu ver, a análise do texto de Einstein resulta como sendo muito mais interessante e mais determinante enquanto argumento para a defesa da sua proposta. Analisando o artigo sob a óptica de uma retórica da proposição, o autor defende que encontramos dois estratos; um que corresponde à conformidade existente entre o trabalho que o cientista está a desenvolver e as suas investigações anteriores, e outro,
que constitui um indicador do rumo que seguirá no, futuro, a sua investigação. Estes estratos correspondem exactamente ao dois actores que (obrigatoriamente) se encontram em qualquer texto científico.
O mesmo é dizer que um artigo científico é uma ponte entre o trabalho passado e aquilo que o cientista desenvolverá no futuro. Damo-nos conta que o autor como que se desdobra em diferentes actores situados num mesmo cenário, cada um destes ocupado com o seu monólogo. Há sempre um jogo constante entre os dois momentos temporais do seu trabalho.
O conjunto destes monólogos é a própria produção do cientista e a retórica é marcada por aquilo que fez no passado e aquilo que fará no futuro. No caso de Bohr, o fascínio pelo que será o seu novo tema, o da complementaridade, - que viria a unir todos os conhecimentos físico-químicos ao seu novo modelo atómico-, é deveras notório. No que diz respeito ao texto de Einstein, encontramos logo, no primeiro parágrafo, o actor 1, em que revela uma retrospectiva acerca da sua posição acerca da electrodinâmica clássica e o seu background enquanto estudante. Imediatamente a seguir, encontramos o actor 2, havendo já a manifestação de um desejo de unir a mecânica e a electrodinâmica (o que será feito mais tarde). (Obviamente, para nós leitores do sec. XXI, é muito mais fácil darmo-nos conta da presença destes actores – uma vez que conhecemos todo o seu percurso posterior-, principalmente do 2º, do que um leitor contemporâneo ao físico).
Uma das funções mais importantes de um texto científico é exactamente a sua perpetuação no tempo, o que se liga também à retórica, uma vez que os leitores devem partilhar desse entusiasmo na abertura de novas perspectivas. No entanto, não podemos esquecer que o leitor contemporâneo deve (idealmente) conseguir também aplicar este “método”. Esta é uma das críticas que poderei apontar a Holton, não me parece adequada esta proposta, na medida em que apenas apetrecha o leitor com uma certa distância temporal das ferramentas para uma análise mais completa da retórica de proposição (e até da de apropriação/rejeição). Quererá isto dizer que os textos
científicos contemporâneos não poderão ser convenientemente analisados? Isto implica que quanto mais antigos forem os textos, quanto mais conhecermos acerca do percurso científico do autor, melhor o analisamos? Esta perspectiva holtoniana é passível de levantar muitos problemas de análise.

(...)

Voltando um pouco atrás, estes dois actores não estão sozinhos nem fechados no cenário definido pelo texto científico. Cada actor antecipa as questões dos seus colegas, como se também já estivesse a estabelecer um diálogo com eles, “por más que el científico-autor afirme, por lo general, que su obra se limita a facilitarnos el acesso a la naturaleza misma, tal y como se revela directamente a través de la razón y la eperimentación”. (p.107). Assim, para continuar a metáfora de Holton, podemos dizer que o guião do autor traz à cena outros cientista, outros personagens, como, por exemplo, Lorentz, Föppl ou Mach, no caso de Einstein. De uma maneira muito forte a personagem de Lorentz está presente no artigo. De tal forma que estes nomes apareciam conjugados em muita da literatura especializada, ainda que as suas teorias representassem cosmovisões diferentes: enquanto Lorentz perpetuava uma visão do mundo em conformidade com a época, a de Einstein era revolucionária, com um carácter pretensamente generalizador. Embora apresentassem equações de transformação semelhantes, permitindo a apresentação de resultados observáveis igualmente semelhantes, contemplam objectivos e são produtos de diferentes imagens do mundo. Vários são os pontos de divergência concretos, mas talvez a existencia/inexistência do éter seja aquela mais evidente. Estas diferenças demoraram a ser notadas, no entanto, e o termo Lorentz-Einstein foi amplamente utilizado. (Aqui, às confusões na interpretação, a retórica não pode decidir – é o que Holton chama a inércia da retórica).

(...)

A análise da retórica de apropriação ou rejeição que Holton a propósito do Princípio da Relatividade é, a meu ver, o ponto mais interessante da sua proposta. Creio que, no respeita à retórica da proposição, o filósofo talvez tenha ido demasiado longe na
metáfora.


Embora toque pontos interessantes, não me parece que a analogia com uma peça teatral seja a mais apropriada, já que dá a impressão de reduzir o texto científico não só a uma espécie de ficção, mas também a um texto que, essencialmente, parece não marcar pela diferença em relação a um texto político ou literário, por exemplo. O que quero dizer é que Holton se esquece da parte mais conceptual/técnica – que é, no fundo, o core do texto- do texto e da forma como é comunicada que, até mesmo do ponto de vista retórico, também poderá ter interesse.

Em relação à retórica de apropriação ou rejeição, Holton compara-a a um cenário “externo e colateral” (p.110), em que as personagens, antes no texto, se tornam de carne e osso.

O caso einsteiniano é um ponto de análise privilegiado, uma vez que se deu confronto público. Uma disputa iniciada por Kaufmann que se afirmava como estando na posse dos resultados experimentais que pendiam para a decisão acerca das teorias em confronto, sendo que não eram compatíveis com a hipótese de Lorentz-Einstein (só mais tarde é que Kaufmann separa as cosmovisões de ambos os físicos). Einstein, de início não reage, mas acaba por responder que a sua teoria foi entendida num sentido demasiado fechado, apenas ligado à termodinâmica, e que eventualmente poderia haver algum erro nos dados de Kaufmann. Mais, intui que estes dados pareciam estar a favorecer certas teorias. E até tinha razão: na ausência de uma teoria que seja empiricamente infalível, valores não-epistémicos parecem entrar em jogo. Planck, um dos maiores defensores da teoria da relatividade já tinha mostrado que, havendo dados não-conclusivos nas experiências, era possível fazer deles um uso retórico. Mas é através da reconstituição da conferência de 19/09 de 1906, em Estugarda, perante a Assembleia Alemã de Investigadores da Natureza, em que, chegando o momento em que tem que se optar por uma das teorias, ou a de Max Abraham ou a de Lorentz-Einstein, sendo que nenhuma delas estava completamente provada ou refutada, ambas tinham o mesmo valor efectivo, o que acabou por imperar foi uma certa inclinação pessoal para uma determinada imagem de mundo que quer uma quer outra comportavam, deixando o valor epistemológico para segundo plano.

Décadas mais tarde a imagem de mundo que subjaz à teoria da relatividade acabou por vingar e tornar-se parte integrante da cultura da ciência dos nossos dias, com a ajuda de uma retórica que não encontramos à partida no artigo de 1905. (p.117)

O que Holton, em última instância, vai defender é dada a equivalência epistémica e empírica de duas teorias, as razões que nos levam a optar por uma ou por
outra ultrapassa aquilo que é científico por definição. Podemos encontrar elementos psicológicos ou até mesmo filosóficos que nos orientam na escolha, nomeadamente, aqueles que podem estar relacionados com uma determinada cosmovisão ou com a potencialidade/fecundidade dos temas na formação de nova ciência; “cada teoria prepara el escenario para uma forma futura de ciencia muy diferente de la que propone su rival, un escenario futuro en el que un nuevo grupo de personajes podrá representar sus proprios actos en un drama interminable.” (p 119)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Eu, Putnam e o argumento da Terra Gémea

Poizé. Já há algum tempo que não vinha aqui, por falta de tempo e interesse. A verdade é que continuo filosoficamente produtiva (mais do que nunca) e, finalmente, consegui fazer disto profissão.
Quer dizer... ainda não, porque a FCT deve-me dinheiro desde Março. É só mais um bocadinho de paciência e poderei andar aí a cometer algumas excentricidades como a boa burguesa-fdp que sou.

Vamos ao que interessa... Desta vez, deixo aqui um bocadinho de Putnam, para vos mostrar o que é que eu ando a fazer às tantas da madrugada, já quando as outras criaturas da noite estão a fazer o ó-ó.

Por que razão a extensão do nosso termo (terráqueo) "água" já era a substância H2O mesmo antes de se saber que era H2O (do mesmo modo que a do termo "água" dos habitantes da Terra-Gémea era a substância XYZ antes de se saber que tinha tal composição).

O que Putman pretende com o argumento da Terra Gémea é refutar a teoria descritivista do significado que supõe que compreender um termo é estar num determinado estado psicológico (de crença ou memória), que corresponderia à apreensão (“grasping”) da sua intensão. Uma vez que a intensão determina a extensão (no sentido de que dois termos não podem ter a mesma intensão e divergirem em extensão) segue-se, em última instância, que são os nossos estados psicológicos que determinam a extensão de um termo. Empreender tal tarefa é o mesmo que perguntar se os significados estão ou não na nossa cabeça.

O argumento pretende fornecer um exemplo para termos que podem ter a mesma intensão e extensões diferentes. “Água” é o termo usado no sentido de água na Terra e no sentido de água na Terra-Gémea, só que a água na Terra é H2O e na Terra-Gémea é XYZ, ou seja, o termo assume significados diferentes.

Estendendo este argumento e imaginando dois indivíduos, Oscar1 e Oscar2, falantes da mesma língua na Terra e na Terra-Gémea, no ano de 1750, em que ainda não era sabido que água1 e água2 eram, respectivamente, constituídas por moléculas de H2O e moléculas de XYZ, temos que os dois indivíduos são duplos e têm exactamente as mesmas crenças acerca de água, ou seja, têm o mesmo estado psicológico. Eles compreendem o termo de modos diferentes, atribuem-lhe significados diferentes. (mesmo que estejamos em 1750, quando a comunidade científica não sabia que água era H20). Neste exemplo, a intensão não determina a extensão , o estado psicológico não determina o significado. “thus the extension of the term ‘water’ (and, in fact, its meaning in the intuitive preanalytical usage of that term) is not a function of the psychological state of the speaker by itself” .

Da mesma forma, chega a esta conclusão com um exemplo não-ficcional . É, neste momento, que Putnam toca naquilo que chama de “hipótese sociolinguística” que consiste no seguinte: ainda que grande parte dos falantes de uma comunidade não tenha os conhecimentos científicos que lhes permita dar as condições necessárias e suficientes de modo a determinar a extensão de um termo, certamente que podem existir, nessa mesma comunidade, falantes que estejam na posse desse conhecimento; os especialistas. Os especialistas é que podem na realidade “fabricar” a extensão de um termo. No caso de “água”, termo de género natural, esta hipótese não parece ter aplicabilidade (lembremos que em 1750 ainda não sabíamos que água era H2O nem os habitantes da Terra-Gémea estavam na posse do conhecimento que água é XYZ). Por isso, Putnam vai insistir no facto de que é através de definições ostensivas que se explicam os significados de termos de género natural.

A definição ostensiva de um termo assenta num princípio de mesmidade entre o líquido que eu estou a apontar e aquilo a que a comunidade de falantes em que me insiro chama noutras ocasiões de “água”. Este princípio é condição necessária e suficiente no caso da proposição empírica ser satisfeita, ou seja, temos que considerar esta relação como sendo, antes de mais, teórica: “whether something is or is not the same liquid as this may take na indeterminate amount of scientific investigation to determine”.
Suponha-se que Oscar1 apontava para um copo com água e dizia simultaneamente "isto é água". Perante isto, o que Putnam diz, é que podemos colocar duas hipóteses:

(i) "água" designa o que quer que seja que satisfaça "este líquido aqui" no mundo em que esta definição é usada. Caso em que tem diferentes extensões, mas o mesmo significado.
(ii) "água" designa “este líquido aqui”, em todos os mundo possíveis, o que quer que seja que satisfaça essa definição ostensiva no mundo actual.

O que está suposto em (i) é que o termo "água" designaria a água1 quando usado por Oscar1 e designaria a água2 quando usado por Oscar2. Seguindo (ii), o termo "água" designa qualquer objecto que satisfaça a relação de mesmidade com (de ser o mesmo líquido que este) a nossa água (água1). O primeiro caso assenta numa compreensão do significado de um termo baseado na apreensão da sua intensão e leva-nos a rejeitar a ideia que a extensão é determinada pela intensão, na medida em que, em (i), "água" tem a mesma intensão e diferentes extensões. O autor põe esta hipótese de parte, já que, quando afirmamos "este líquido é água", estamos a dizer que a água é o que quer que seja que se encontre na relação de mesmidade com a nossa água.

É isto que explica as nossas intuições quando achamos que a água2 não é a nossa água ou que o ouro falso não é ouro: a água2 não é água porque não é H2O, o ouro falso não é ouro porque não é Au. Estas substâncias não partilham a propriedade de ser a mesma substância que esta aqui no nosso mundo actual. Nesta medida, podemos dizer a extensão do nosso termo (terráqueo) “água” já era a substância que é H2O, mesmo antes de saber que era H2O (do mesmo modo que a do termo “água” dos habitantes da Terra-Gémea era a substância XYZ antes de se saber que era essa a sua composição química).

A terminologia usada por Putnam é que os termos de género natural são indexicais, significam o que quer que satisfaça a relação de ter as mesmas propriedades que a nossa água, o que, em última análise, é dizer que designam rigidamente no sentido kripkeano (“água” designa rigidamente o mesmo líquido em todos os mundos possíveis em que esse líquido existe) .